Wednesday, July 11, 2007

Jornalismo literário - Tô com fome!

Luana Francischini

Contém 3 ml de solução diluente e um frasco de penicilina em pó. Enquanto o elevador subia vagarosamente até o décimo andar, eu aproveitava para ler a bula do Pentacilin C, mais uma tentativa para eliminar uma infecção no fígado grave. Seria leptospirose? "Trec".

Do corredor, ela ouviu o barulho da porta. Nem mesmo 15 anos são capazes de tirar um dos sentidos mais aguçados dos cães.

- Ela chegou, finalmente.

Nenhum xixi aparente no chão branco da pequena sala de minha casa. Bom sinal, pelo menos voltou a controlar a bexiga, um tanto frouxa a essa altura da vida. Ainda mais com a fosfatáse e os leucócitos "lá na casa do chapéu", conforme me traduziu a veterinária, com o hemograma de Pupi nas mãos. Deve estar quietinha na cama vermelha do tamanho exato do seu corpo, uns três palmos, única alternativa encontrada por ela para vencer a dor de carregar um abcesso na altura da pata dianteira. Mal apareci no corredor, os olhos grandes e já vívidos me fitaram, como se quisessem me fisgar logo de cara. Deve ter associado que reunir as forças ainda restantes e, ao menos, sentar-se certamente indicaria alguma mudança em seu estado de saúde. Três dias sem comer, você nunca ficou sequer um dia inteiro sem ao menos um pão com café! As costelas, resultado do jejum forçado, ficaram ainda mais aparentes. Os olhos da beagle, tricolor de nascença e grisalha pela força do tempo, impiedoso também com os animais, continuavam me fitando.

- Um bifinho.

Me aproximo para um afago - serão seus últimos dias?. 'Pupinha, Pupinha' agora não.... Ainda sentada, Pupi arrisca ser mais explícita no olhar, que encontra o armário e volta para mim, como se estivesse óbvio que a gula, pecado capital maior dos cães de mesma raça, tinha voltado, à medida que o tratamento veterinário começava a surtir efeito. Será mais um dia com fome? Abro o pacote de bifinhos caninos sabor churrasco, perdição da "Gorda", apelido recebido nos primeiros anos de vida e que agora soava fora de contexto. Quem sabe hoje ela come, são os preferidos. Ela permanece imóvel, sem acreditar que a estratégia deu certo. Quando aproximo o petisco, "nhac", de uma mordida só. Foram mais dois em seguida. Desejo satisfeito, ela volta a se deitar em seu leito. Se pudesse sorrir, certamente o faria, não apenas para me agradecer, mas também para exibir o riso da vitória, de que valeu a pena ficar um minuto resistindo à dor de se apoiar naquela maldita pata com o tumor, para receber um bifinho.

- Ainda era sabor churrasco!

3 comments:

Najara Lima said...

Muito bom, Luana. Me deu até vontade de ter um cachorro! Senti o sofrimento da beagle, consegui entender seus pensamentos. Muito ousado. Bem legal o fluxo de consciência de um animal, que muitas vezes parece mais humano que a gente.
Como disse Leandro, se Mailer fez, por que você não conseguiria? Conseguiu. Parabéns!

Josi Anjos said...

Boa idéia a de fazer o fluxo de consciência de Pupi. Apesar de ter ficado receosa de arriscar vc foi bastante radical ao escolher sua cadela como personagem para a atividade, afinal, é preciso muita intimidade e capacidade de percepção para compreender os pensamentos de um animal.
Gostei do texto, um pouco tímido quanto aos trechos de fluxo, mas muito bom.

Leandro Colling said...

Ah esses cães e seus donos!!! Bom texto.