Monday, July 16, 2007

Jornalismo Literário - Mil e uma devoções

Renata Leite

Maria de Lourdes, no auge de seus 76 anos, leva uma vida que pediu a Deus. Preocupações não têm. Os quatro filhos estão todos criados, e muito bem criados. Sua rotina é tranqüila, pode até parecer monótona e desinteressante, mas não é. Os horários costumam ser sempre os mesmos: para acordar, cuidar da higiene pessoal, fazer as refeições... Sua residência, em Brotas, é aconchegante e diferente para alguns. Longe da idéia de ser o local para passar o resto da vida somente para aqueles que não têm família ou é esquecido pelos parentes mais próximos, dona Lourdes optou por morar em uma casa para idosos. Uma opção de moradia agradável.

Dona Lourdes ficou viúva. Duas décadas e meia sem o seu grande companheiro e amigo. Oh! seu amor, seu primeiro e único amor. E o dia do seu casamento, que lindo ele estava. A igreja estava belíssima. Os convidados a parabenizando, jogando grãos de arroz para desejar boa sorte. Tradição antiga. Hoje não se vê mais isso, talvez pétalas de rosas. É só entrar na capela do asilo que reside e as lembranças daquele dia, ela toda de branco, véu e grinalda, vêm à mente.

Infelizmente seu grande amor não está mais ao seu lado e só as lembranças dos momentos felizes a fazem senti-lo sempre por perto. Quando Antônio faleceu, ela mudou-se para o abrigo Casa Mont'Alverne.

Mãe de quatro filhos. Todos foram bem criados. Seus herdeiros não concordam que ela more no abrigo. Ela não quer incomodá-los, pois sabe que um velho dentro de casa sempre é um estorvo. Na vida deles ela não palpita, então eles não devem dar palpites na dela.

Modernidades não são com ela. Gosta mesmo do seu bom e velho rádio que ganhou no Baú da Felicidade do Silvio Santos. Silvio Santos. Quantas Telesenas ela já comprou, se contenta com o radinho. Recostada na poltrona da vovó escuta as notícias e ouve música. Sempre bem informada. Telefone para fazer algumas fofocas com vizinhas antigas,ou falar com os filhos. Celular. Modernidade. Presente dos filhos. Fazer o que, não é? Não jogou fora, mas sempre o esquece na mesinha de cabeceira. Principalmente quando vai ao salão.

Vaidosa, ela não dispensa um esmalte vermelho nas unhas e o cabelo grisalho tem que sempre estar escovado. Avó de 10 netos e dois bisnetos, dona Lourdes se diz feliz e realizada com a vida e o local em que mora. A Casa Mont'Alverne existe há 40 anos e pertence à Ordem Terceira de São Francisco. Lá moram quarenta idosas distribuídas em quartos do tipo apartamentos. Em cada um deles possui além dos móveis comuns para um quarto como cama, guarda - roupa e televisão, mesa com cadeiras, geladeira e sofá. A mais velha das senhoras é Ainá de Figueiredo Caldas, com 102 anos, completados em 22 de março.

A liberdade na casa é total. Faz o que quer. Pode ir à rua, à missa e para casa dos filhos a qualquer hora, mas só tem uma coisa: deve avisar caso retorne mais tarde. É uma questão mesmo de satisfação, para as colegas não ficarem preocupadas. Católica de carteirinha, Dona Lourdes não dispensa ir à igreja quando há celebrações festivas. Se é de algum santo da sua devoção, ela está lá.

No seu cantinho, como costuma se referir ao quarto de número 16, ela coleciona cachorros em gesso e várias imagens de santos, para todas as devoções: Santa Rita, São Francisco, São Pedro, São João, Santo Antônio, Nossa Senhora de Fátima, do Carmo, Mãe Rainha, e tantas outras.

Este ano ganhou de presente uma viagem para São Paulo. Visita do Papa ao Brasil. Nunca pensou em vê-lo de perto. E lá foi ela. De avião, sua primeira viagem. Quanta emoção. Se despediu de suas coisinhas em seu quartinho na Casa Mont'Alverne e foi conhecer o papa Bento XVI. De longe, espremida no meio da multidão, dona Lourdes tentava dar um adeusinho ao papa. Muitas lágrimas rolaram. É um santo. Presente de Deus. Experiência boa aquela.

O retorno a Salvador coincidiu com um domingo. Dia de almoçar com os filhos e netos. Ir para casa deles é sempre uma diversão. No aeroporto todos lhe esperavam. Faltava pouco para o meio-dia. O barrigão de nove meses de Beatriz, a neta mais velha, impressionou. Muito grande. Vai parir a qualquer momento. E não é que estava certa? Lourdes estava a postos para digerir o bobó de camarão, o prato predileto, quando a bolsa rompeu. É muita emoção. Conhecer o papa, andar de avião, ver os filhos...O coração não aguenta!

O almoço já era. O delicioso e saboroso bobó de camarão fica para próxima. Corre, corre, corre...O que fazer? Agir. Não há tempo para pensar. Poderia fazer como antigamente, na casa mesmo. Beatriz, fresca do jeito que é, não aceita. O destino é o Hospital Jorge Valente. No pensamento de Dona Lourdes, o obstetra estaria almoçando com a família naquela hora de domingo. Dito e certo. O rumo foi seguir para outro hospital: a Sagrada Família, onde o único obstetra plantonista estava realizando outro parto.

Beatriz não suportava as dores de parir. Faltava pouco para a criança nascer. Quanto desespero! A neta de dona Lourdes se acomoda em uma cama de um dos quartos do hospital. De frente para a imagem do Sagrado Coração de Jesus, fixado na parede, dona Lourdes e mais duas enfermeiras fizeram o parto de Maria Esperança, sua bisneta.

1 comment:

Leandro Colling said...

Bom, quase um perfil. Veja os meus comentários sobre o fluxo no texto da Suzy.