Tuesday, July 10, 2007

Jornalismo literário - Lagoa de sangue

Luana Francischini

As plantas nos vasos improvisados em garrafas pet e colocadas no parapeito da única janela da frente da casa nº 14 da rua Guararapes, no bairro de Itapuã, sinalizam que ali mora gente capaz de valorizar a beleza e a importância do verde mesmo em um cenário cinza e feio, de ruela de periferia. Antonio Conceição Reis, conhecido ambientalista, provavelmente tenha conferido as mudas antes de bater a porta e sair com a filha para levá-la à escola, ele andando, ela de cadeira de rodas, onde está presa por todos seus 16 anos. Tinha tudo para ser mais uma manhã comum a de segunda-feira, 9 de julho.

- Boa aula, minha filha.

Antonio não sabe, mas não voltará a vê-la. Nem verá suas plantas outra vez. Muito menos a lagoa que já teve água escura e areia branca, motivo maior de uma luta ambiental numa época em que o progresso urbano vale mais do que qualquer ecossistema. No caminho de volta, deve ter cumprimentado alguns vizinhos - depois de mais de 18 anos lutando à frente do Grupo Ecológico Nativos de Itapuã, o negro alto, magro, bermuda e camiseta, e um tanto sisudo era figura conhecida nas redondezas. Aproveita para planejar mais uma ação para chamar a atenção da sociedade e dos poderes públicos de que a vizinhança ao redor do parque do Abaeté formada por condomínios de luxo não era das melhores e resultava no assoreamento do cartão postal. Mas Antonio não cruzou a porta de casa, cor de terra, nunca mais. O mais provável é que seja dele a identidade de um corpo carbonizado encontrado no fim da tarde de ontem (9/7) dentro de um Ford Ecosport prata, totalmente queimado, com vários tiros no rosto e tórax, mãos quebradas, reduzido a pó.

A estrada de barro, cortando uma região de proteção ambiental em Vila do Abrantes, distrito de Camaçari, Região Metropolitana de Salvador, levou a polícia a encontrar o desfecho trágico para quem dedicou uma vida à luta ecológica. E fez inimigos não apenas por conta disso. Inimigos que o alvejaram na manhã de ontem poucos metros antes de sua casa, encapuzados, depois de saltarem do Ecosport de placa JQS 9300, com armas de uso exclusivo das polícias civil e militar, numa ação rápida. Os assassinos levaram o corpo e deixaram nas paredes e calçadas cartuchos calibre quarenta e sangue. Sangue que, segundo testemunhas, agora caladas pelo medo, tiveram que lavar por ordem dos executores, alterando a cena do crime.

- Ele recebia muitas ameaças.

A voz de dona Eliene Reis, senhora de cabelos curtos e pretos, morena, óculos que escondem as lágrimas de quem perdeu o marido assassinado, é firme, apesar do sofrimento. Na delegacia do bairro, onde garante que Antonio já havia registrado queixas sobre ameaças que vinha sofrendo, ela encara a delegada responsável pelo caso como se quisesse descobrir se poderia encontrar alguma cumplicidade naquela mulher do outro lado da mesa. Francineide Moura, uma baixinha, magrinha que sempre impôs respeito aos presos da Delegacia de Repressão a Furtos e Roubos de Veículos, escuta o depoimento com atenção. Aquele provavelmente é o primeiro caso de repercussão midiática do qual está à frente, desde que foi deslocada para 12ª delegacia de polícia, no início do ano.

Empresários do ramo imobiliário, comerciantes da região, produtores de eventos, todos eram inimigos em potencial de Antonio. O ambientalista não permitia a realização de grandes festas nas áreas de proteção permanente e denunciava o uso indevido das areias das dunas e água dos mananciais do Abaeté nas construções. Em fevereiro desse ano, porém, adicionou à lista de desafetos policiais civis. Naquele mês, numa ação conjunta do Centro de Operações Especiais - COE com a Delegacia de Tóxicos e Entorpecentes, na Baixa da Soronha, em Itapuã, a casa nº 14 foi invadida. Não havia mandado. Não havia nem bandido, nem traficante, apenas a adolescente paraplégica de 16 anos que, meses mais tarde, ficaria sem pai.

Da mesma forma que sempre lutou pela preservação do meio ambiente, Antonio procurou a Corregedoria da Polícia Civil para registrar uma queixa contra abuso de poder.

- Ele já tinha desistido do caso, já sabia que ali era uma perseguição policial e a polícia não tem culpa se o traficante usou a casa dele como rota de fuga. - justifica a delegada.

Francineide sabe que precisa reforçar a informação, pois a essa altura a imprensa já tem conhecimento sobre um compromisso que Antonio tinha marcado na agenda do dia de sua morte.

10:00 - depoimento na Corregedoria - identificação dos policiais.

O depoimento nunca aconteceu. A identificação deles também não. A que falta é a do corpo carbonizado, aquele que deve ser de Antonio mas que seus executores souberam perfeitamente danificar, destruindo impressões digitais, arcada dentária, ossos. Só resta esperar o laudo do Departamento de Polícia Técnica, que deve durar 20 dias. Daí a família Reis terá certeza daquilo que já suspeita. E, quem sabe, restem forças para que dona Eliene, a filha querida e todos os meninos do Abaeté que foram tirados da marginalidade por Antonio possam esperar justiça e continuar defendendo a lagoa. Que já teve água escura e areia branca.

* Exercício produzido a partir das informações publicadas nos jornais A Tarde, Correio da Bahia e no BA TV.

6 comments:

renata purri said...

Excelente.

Silvia Mizuno said...

Gostei muito do seu texto. Me ajudou a entender um pouco mais da dinâmica do jornalismo literário. Valeu!

Leandro Colling said...

ótimo texto, mais um que comprova minha tese de que é possível fazer um texto mais interessante exatamente com as condições de produção que nós temos nas redações. Basta ter vontade, saber fazer e ter quem publique.

Najara Lima said...

Nossa, com esse texto eu até me arrepiei. Muito bom mesmo, Luana. Outra vez digo que o jornalismo seria outro se esse texto tivesse sido publicado em um grande veículo de comunicação.
Literário, narrativo, descritivo, com informações quase que exclusivas, que eu não tinha visto nem nas matérias lidas, nem nos textos dos colegas. Parabéns.

Luana Francischini said...

Valeu pelo "até me arrepiei", Najara. Na minha atividade profissional dentro do jornalismo - produção e pauta de TV - exercito pouco a elaboração de textos. Escrever motivou desde o início minha escolha pelo jornalismo, e as aulas de Colling têm sido um exercício prazeroso.

Alaine Santos said...

Massa! Senti na pele toda a descrição. Vc não tem pena de escrever. Isso é bom! Chega de jornalista preguiçoso!