Tuesday, July 10, 2007

Jornalismo Literário - Tiros da intolerância

Pablo Reis

O dia nem bem começara e aqueles estouros graves de canhão chamaram a atenção da vizinhança. Alguns foram à porta e viram o corpo de Antônio sendo arrastado para o porta-malas de um carro prata, quase em frente da própria casa. O bairro de Itapuã era acordado com o assassinato de uma liderança local e um dos ambientalistas mais populares de Salvador, o ativista ecológico Antônio Conceição Reis.

No local do atentado seguido de sequestro, a rua Guararapes, três cordas de bandeirolas já sem cor lembravam a festividade do São João. Só que nenhum estrondo junino foi tão assustador quanto as 14 cápsulas de armas para uso exclusivo da polícia, calibre ponto 380 e ponto 40, restos de massa encefálica e dentes da vítima, vestígios da brutalidade. Antônio tinha ido levar a filha paraplégica, de 16 anos, à escola e, no retorno, foi recebido por tiros em frente da garagem da residência, por volta das 7h. Caído no chão, continuou a ser alvejado no corpo e no crânio pelos mesmos quatro homens que o levariam para o carro.

Na rua Guararapes, a fachada de tinta cinza descascada da casa onde morava com as duas filhas e a mulher ficou com a aparência mais triste do que o normal. Nas redondezas, os vizinhos se trancaram no medo das represálias, na incerteza sobre os autores do crime.

Com 44 anos, Antônio Conceição Reis preservava o físico da época de adolescente, o período em que decidiu ser guardião das dunas e da Lagoa do Abaeté que lhe apresentaram ao sentido lúdico de infância. As camisas verdes de ativista lhe desciam por tórax e pela barriga sem saliências como se fossem uma segunda pele. Antônio ia além da aparência jovial quando falava sobre a natureza e utilizava um discurso adulto, com a tenacidade dos corajosos.

Imaginar interessados na morte do ecologista não seria tarefa difícil. A intransigência na defesa dos recursos naturais rendeu a Antonio uma selva de inimigos, todos ameaçando o bote por telefonemas anônimos ou bilhetes deixados na porta de casa. “Sempre faziam questão de dizer que os dias dele estavam contados”, denunciou Everaldo Sampaio, vice-presidente da ONG Nativos de Itapuã, fundada e dirigida por Antônio.

Os comerciantes afetados pela proibição de festas de Carnaval e Reveillon no Parque do Abaeté, a partir de um movimento liderado por Antonio para que a área de proteção estivesse realmente resguardada, foram logo lembrados pelos vizinhos. A mulher Eliane pensou imediatamente no depoimento que ele daria naquele dia, como parte no processo movido contra policiais civis supostamente truculentos em abordagens durante uma investigação na Baixa do Soronha.

Na Baixa do Soronha, como outros redutos periféricos de Salvador, onde o tráfico de drogas se torna tão marcante como o número do CEP, policias costumam descer de suas viaturas com os rostos cobertos por capuzes e um dogma: quase todos são culpados, até que se prove o contrário.

Antônio decidiu denunciar na Corregedoria da Polícia o que seriam os excessos daquele 6 de fevereiro, a humilhação de ter a casa com duas adolescentes e a esposa invadida por homens armados sem mandado de busca. Recentemente, tinha até comentado com Eliane que talvez fosse melhor desistir do processo. Nem a tentativa de incendiar a barraca do casal no Parque do Abaeté o deixara tão abalado.

Eliane Sampaio Reis cumpriu um dever de cidadã, antes de seu luto de esposa aviltada. Prestou depoimento na delegacia de Itapuã, confirmou com a delegada Francineide Moura as ameaças e lembrou que todas elas tinham sido registradas naquela mesma unidade. Bastavam ver os boletins antigos. Voltou para a rua Guararapes, na casa simples de paredes descascadas, transformada em masmorra do que sobrou da família. À tarde, uma ligação da polícia informava a descoberta de um carro com as mesmas características incendiado numa reserva ambiental de Camaçari com um corpo carbonizado em seu interior.

Com algumas lágrimas e o choque do terror, Eliane inaugurava sua viuvez. O dia nem bem começara e aqueles disparos de ponto 380, ponto 40, tiros de um canhão da intolerância, pareciam querer acordar todo mundo.


* Exercício produzido a partir das informações publicadas nos jornais A Tarde, Correio da Bahia e no BA TV.

3 comments:

Yuri Almeida - almeidayuri@hotmail.com said...

Perfeita a descrição Pablo, gostei da riqueza dos detalhes....

Silvia Mizuno said...

É difícil comentar um texto de Pablo. Já sou fã de carteirinha.

Leandro Colling said...

Repito o comentário feito no texto da Luana: ótimo texto, mais um que comprova minha tese de que é possível fazer um texto mais interessante exatamente com as condições de produção que nós temos nas redações. Basta ter vontade, saber fazer e ter quem publique.