Monday, July 9, 2007

Jornalismo literário - Da Bahia para o outro lado do mundo

Silvia Mizuno

Isso já tem tempo, na época em que Salvador só recebia turista europeu e nossos hermanitos do Cone Sul. Lá estava eu, recém-chegada à boa terra tentando compreender todos os aromas, crenças, cores e ao mesmo tempo sofrendo com o calor úmido que só lembrava ter sentido em Santos, uma praia feia lá no litoral de São Paulo. Santos e Salvador, tão diferentes e tão próximas na umidade.

Voltando àquela época... caminhava por uma rua da Pituba, um bairro em pleno crescimento, mas com um ou outro comércio típico do interior. De longe vi uma peixaria com jeito de que vendia coisa fresca. Na frente um freezer branco chapiscado de ferrugem e um menino que não devia ter mais de dezesseis anos, mulato, cabelo bem curtinho, máquina um no máximo, olhos distantes - Acho que hoje não vendo nada - cotovelos apoiados e as mãos segurando a cabeça que caia para a direita, até que me avistou do outro lado da rua. Na hora esticou o corpo e arregalou os olhos. Mantive linha reta em direção à peixaria - É nessa noite que faço meu primeiro sashimi na Bahia - A cada passo meu crescia a angústia do menino. - Misericórdia, lá vem uma chinesa. Outro passo - Com fé em Senhor do Bonfim ela não vai entrar aqui. Mais um passo. - Afe Maria, se essa chinesa entrar não vou entender uma palavra. O pé direito dentro da peixaria - Agora lenhou.

- Por favor, até que horas fica aberta a peixaria?

- Como?

- A que horas fecha?

- Hein?

- É porque eu queria voltar mais tarde. Vai até que horas?

Segundos de silêncio até que uma voz feminina, mas do tipo contralto, veio lá dos fundos - às seis, fecha às seis. Agradeci à voz do fundo e ao menino que ainda estava em estado de choque. Fui embora e não voltei à peixaria. Fiquei com receio de ter traumatizado o rapaz com meu sotaque que achava ser paulista. Mas lá na peixaria.

- Ó Maria, como é que você sabia o que a freguesa queria? Desde quando você entende chinês?

7 comments:

Débora said...

Perfeito!!!

Leandro Colling said...

Muito bom o texto, que mostra como um pequeno trecho pode ser saboroso. Um bom exemplo de fluxo de consciência, demonstrando que a dedução pode ser usada, embora sempre com muito cuidado

Vivian Barbosa said...

essa linha tênue entre a "dedução" e o "fluxo" me confunde ainda.
mas foi um excelente exemplo pra me ajudar nesse mistério...
ótimo texto!

renata purri said...

O texto é um deleite para o leitor, mas concordo com a Vivian; nossa "mania" por exatidão ainda não me deixa á vontade para o tal fluxo de consciência. E se o tal vendedor da peixaria fosse mudo, ou já tivesse conhecido uma japonesa parecida com a Silvinha e estava assustado com a coincidência? Vai saber o que se passa na cabeça dos outros...

Luana Francischini said...
This comment has been removed by the author.
Adriana Rodrigues said...

Yes!!
Hoje posso me dar o luxo de entender esse tal de 'Fluxo de Consciência", tão usado e abusado pela Clarice Lispector, pelo texto de Sílvia.A sutil diferença e como colocar ainda me fazia franzir a testa e perguntar aos colegas como funciona a coisa. Este texto está muito bem escrito, sucinto e agradável.
Destaque para o detalhe da descrição do cabelo do menino: "...Cabelo curtinho, máquina um no máximo..."
Legal garota!

Luana Francischini said...

Parece uma piada! Incr�vel quando a narrativa � bem conduzida e o cen�rio e as personages bem descritas o resultado do texto � saboroso parao leitor! Achei o fluxo de consci�ncia bem veross�mil.