Wednesday, July 11, 2007

Jornalismo Literário - Tantas emoções

André Martins

O despertador tocou às 6h da manhã. A luz do sol já clareava o quarto mesmo por detrás das cortinas. Ela levantou da cama, como sempre, por superstição, pelo lado direito, vestiu seu roupão de seda azul-marinho e caminhou até o banheiro para escovar os dentes. Mais um dia como tantos outros. Já na cozinha prepara o café da manhã. Pára e fala para a chaleira que hoje poderia ser diferente, sua irmã que há anos sofre de pressão poderia levantar da cama sorridente e dizer que estava se sentindo tão bem como nunca esteve.

Mas, não. “Não! Não! Não! Tudo de novo não!” A tão sonhada cena não aconteceu. Sua irmã apareceu na cozinha aos prantos. Começou tudo de novo, “muita galinha e pouco ovo”. Esse é o bom dia de Dona Odete, aposentada do serviço de secretária, mas ainda na ativa como dona de casa. No edifício em que reside há 25 anos, quase todos dormem ainda. Só em um ou dois apartamentos já há movimento.

Como era boa a época do trabalho. Desgastante, corrido, muita coisa para fazer na empresa. Telefone, fax, correspondências, pedidos, relatórios, inúmeros relatórios. Um martírio pegar ônibus. Dois coletivos da residência até o trabalho, na Lapinha. Ela pegava, não se queixava, era o que tinha que ser feito, seu filho reclama que odeia pegar ônibus. Ele quer um carro. Ela quer ganhar na loteria. Um carro para ele, uma casa para sua neta, filha de seu primeiro filho.

Não é muito fã de cozinha mas, quando entra em uma, faz qualquer comida com “muito amor e carinho”. Como dizem que toda boa cozinheira tem seu lado bruxa, ela não dispensa o uso de umas palavrinhas mágicas que não revela a ninguém. “Tanta conta pra pagar!” Volta para casa e mal chega já é hora de pensar no jantar. Depois do almoço, descansa alguns minutos na frente da televisão – gosta de assistir a novela da tarde e fazer seus artesanatos – mas, a responsabilidade de pagar as contas não a deixa ficar muito tempo na frente da tv. Sai apressada, entra em um banco, em outro e mais outro. É luz, telefone, celular, condomínio. Após a última refeição, não perde a mais uma novela global.

Nasceu em uma cidade próxima ao distrito do Porto, em Portugal. Dona Odete é a filha do meio de Armando e Margarida. Desde pequena sempre foi muito prendada. Costurar, pintar, bordar e outros serviços manuais sempre foram seu forte. Seu primeiro nome, Laurinda, é uma homenagem à sua madrinha, que ficara em Portugal. “Nome antigo, feio, tinha que ser coisa desse povo velho, de 1900 e antigamente”.

Como foi lindo o casamento, ela toda de branco, vestido bordado à mão. Enxoval inteiro bordado por ela. Até hoje ainda tem jogos de cama e mesa. Sempre foi apaixonada pelo rei Roberto Carlos. Fã incondicional. No som em seu quarto enquanto descansa um CD do ídolo roda na agulha. Tantas emoções. O pão está pronto. Pães caseiros são os melhores. O pãozinho e a lembrança do Natal de 1998, em Pernambuco, com sua irmã. Lembrou da chuva, ventos fortes, trovão, relâmpago. Um raio que caiu no terreno baldio ao lado da casa de sua irmã. “Ai meu Deus, minha Nossa Senhora! Santa Bárbara nos proteja!” Enquanto isso, na cozinha, a massa de um bolo estava cheio de terra, misturou tudo e levou ao fogo. À noite, o bolo foi servido e todos os convidados acharam uma delícia. A receita nunca foi dita.

3 comments:

Najara Lima said...

Apesar de não descrever muito a dona Odete fisicamente, pude perceber muitas de suas angústias, frustrações, preferências. Senti também o fluxo. Legal o texto. Queria saber a receita do bolo. Me conta?

André Martins e Ariele Andrade said...

A receita não dá pra contar, ela não revelou pra ninguém... hehehe que tal experimentar um pouquinho de terra na massa de um bolo?! foi isso q caiu na massa... a terra do telhado por causa do vento! uhahuahuahu

bom... quanto a pouca descrição, pelo que entendi FC não descreve detalhadamente o personagem, mas a partir do que se passa no pensamento do mesmo o leitor tira suas conclusões de como é o personagem. =)

Leandro Colling said...

Bom o texto, mas fica na dúvida se todos esses pensamentos podem passar pela mente da pessoa na cozinha, ao acordar. Motivados pelo que?