Monday, July 9, 2007

Jornalismo literário - Romário e o sol da aurora

Marvin Kennedy

Dizem que a primeira impressão é a que fica. Desta vez não foi assim...

Já passara da hora do almoço e eu ainda estava imerso nos tacs tacs dos teclados da redação da assessoria em que trabalho, quando o telefone tocou. Era Guerra, o porteiro do gabinete da Prefeitura. Com sua voz de cristão arrependido, me disse que havia deixado dois "irmãos" descerem para falar comigo.

Olhei o relógio do celular, respirei fundo e disse que tudo bem:

- Tá, já que tá dentro...

Saí da minha mesa cinza como as nuvens que cobriam aquela manhã de quinta-feira e abri a porta da sala para os dois irmãos. Surpresa! Em vez de me deparar com aqueles tradicionais irmãos, com roupas de velório e bíblias em mãos, me bati com duas pessoas que me passaram à mente serem jornaleiros do A Tarde, com seus coletes e calças azuis e jornais que largam tinta debaixo das axilas da fardinha.

- Bom dia irmão!

Agora sim ele se fez parecer com um "irmão" de verdade.

- Meu nome é Romário e este é Gilberto. Nós somos do jornal Aurora da Rua.

Esta frase já me fez pensar uma coisa bastante ruim: a mistura de um "irmão" com vendedor à lá telemarketing bem na minha hora do almoço. Porém, o nome e a imagem do jornal, bem colorido e que me fez lembrar o caderno A Tardinha, me chamaram muito a atenção. Resolvi dar trela a eles.

- Este jornal é todo feito por nós, ex-moradores de rua de Salvador. Aqui a gente conta nossa história, nossas vidas. Moramos numa igreja perto da Feira de São Joaquim e, apesar de ainda dormirmos num papelão no chão, não ficamos mais expostos aos riscos da noite nas ruas.

Enquanto Romário, que até se parece com o dos mil gols, baixinho com carinha de marrento falava, eu pensava na disciplina da Pós-graduação e no texto que a história deste cara dava para publicar no Overmundo.

- Custa um real.

Voltei a cair na real.

- Tá, e o dinheiro vai para quem? Perguntei.

Romário, que não tinha a língua presa e não sabia muito bem o português, começou a me explicar que a verba era dividada da seguinte forma:

- Setenta e cinco centavos fica "pra" mim e o resto, vinte e cinco né, é "pra" pagar o papel.

Olhei para Romário novamente, com sua fardinha de jornaleiro azul, parecendo um smurf, e percebi que só os 25 não davam para tanto.

- Certo, mas têm outras pessoas que ajudam vocês?

- Tem sim senhor. Tem uma jornalista que olha as matérias, outra que monta, mas tudo é a gente que faz. A igreja também ajuda.

Romário era morador de rua de Lauro de Freitas, guardava carros e morava na praça por onde passo todos os dias para ir trabalhar e ouvir os benditos tacs tacs dos teclados que as fabricantes dizem ser silenciosos.

Nunca o havia percebido, assim como os ex-colegas dele, com seus colchões de papelão e bombinhas de cachaça, que ainda habitam a Praça da Matriz. Agora "irmão", ele diz estar liberto não só dos perigos das madrugadas ao léu, mas também das drogas.

Quando dei por mim, estava arrepiado e percebi como o jornalismo, a escrita, a publicação e o ato de se ver em boa forma num jornal havia mudado a vida dele. Voltei a pensar como um calouro de faculdade que pensa em mudar o mundo com seus textos jornalísticos, não sabendo ele o que o mercado o reserva.

Botei as mãos no bolso e só achei um real.

-Só tenho para um, mas gostei muito do jornal. Amanhã você pode trazer mais um deste número e dois da edição anterior?

- Posso sim senhor.

Não imaginei que ele voltaria. No dia seguinte, novamente na hora do almoço daquela manhã cinzenta como a minha mesa, o telefone tocou. Era Guerra, agora com uma voz mais contente, anunciando o retorno do irmão:

-Marvin? Oi, é o mesmo irmão de ontem, ele quer falar com você.

- Ah, Romário?! Tá, deixa ele descer.

Romário desta vez chegou mais alegre e me entregou os jornais como lhe pedi. Paguei o que devia e fiquei com uma sensação de vazio, como a de quem vê um pedaço de costela mas só pode comer uma folha de alface no almoço.

- E como eu posso ajudar mais este projeto de vocês?

Tomei um susto com a minha própria pergunta. Romário respondeu com um ar de alegria:

- Pode mandar um e-mail com sugestão, opinião. Aí no jornal tem nossos contatos.

O peitoral de Romário, ao terminar a frase, se encheu de ar, como quem conseguiu completar uma prova para a qual havia treinado muito. Seus olhos brilhavam. Romário saiu de lá com a certeza que conquistara mais um para colaborar com o projeto que mudou a sua vida, a mesma cara que deve fazer um cristão pregador após uma visita bem sucedida à uma casa qualquer numa manhã de domingo.

Romário, o jornaleiro cidadão, volta todos dias às ruas que muito já lhe serviram de morada, mas, agora, seus passos com as havaianas verdes e o sorriso miúdo no rosto trazem um brilho que, com toda certeza, inspirou no nome do jornal: Aurora da Rua.

5 comments:

Leandro Colling said...

Bom texto, mas podia ter um pouco mais de descrição das pessoas e do cenário onde ocorreu a conversa.

renata purri said...

Gostei do texto e da ousadia positiva de Romário; de morador de rua a jornalista cidadão. Bem-vindo.

Luana Francischini said...

Gostei da narrativa, da história de vida de Romário, do texto, mas também senti falta de um pouco mais de descrição.

Yuri Almeida - almeidayuri@hotmail.com said...

Ave Cartes,
faltou a descrição do cenário...já o diálogo ficou perfeito, uma obra prima do jornalismo literário cartiano.

Unknown said...

marvito, tô me tornando fã de sua escrita... vc pecou nos cenários sim! esqueceu de dizer q fui eu quem recebeu o jornal d romário nos peitos e matou a bola pra vc! (rsrsrsrs), mas, deixo isso para a sua avaliação técnica. para os leigos, como eu, a nota é 10.