Tuesday, July 10, 2007

Jornalismo literário - Almoço de família

Renata Purri

Rafael sempre foi uma pessoa de caráter forte; um cara decidido. Não gosta de ser contrariado e, apesar de nunca ter ouvido falar na Declaração dos Direitos Humanos da ONU, é um autêntico defensor da vida - a dele.

Se considera um lutador e quando não consegue o que quer, esbraveja, reclama, se impõe. Naquele dia acordou azedo. Reclamou do café da manhã porque o pão comprado na padaria da esquina pela empregada, a Júnia, não estava crocante como ele gosta. Apressado, bebeu o suco de uva e deixou pingos caírem na camisa branca do pijama. Júnia, distante, pensou: merda, vou ter que esfregar muito pra tirar essa mancha.

Rafa - como é chamado pelos amigos, trocou de roupa e colocou sua bermuda jeans preferida. Decidiu vestir uma camiseta de super herói e calçou o tênis surrado comprado na última promoção da C&A. O sol brilhava forte mas a brisa fria do inverno deixava a temperatura agradável. Era sábado e ele tinha planejado almoçar fora com a família; ia passar o dia comendo e bebendo, num restaurante-fazenda, daqueles longe do centro, que estão sempre lotados, com crianças correndo à beira do lago ou andando à cavalo, gritando, se batendo, rolando no chão, com melecas escorrengo do nariz e babás entediadas finjindo estar atentas a tudo. Nas mesas, velhos barrigudos, mulheres calçando botas de salto alto, peruas desfilando bolsas Louis Vuitton estilo country chique, meninas desfilando seus cabelos lisos que custaram caro, adolescentes com aquela expressão típica de desprezo por tudo e todos, namorados tentando ser educados com os parentes da mais gostosa da turma. Gente de todas as idades que revelam as dores e delícias das relações familiares. E Rafael, ao lado dos seus amados - às vezes nem tanto - parentes.

O garçom chegou trazendo cerveja, cachaça, suco, batata frita e caldo de feijão. Foi quando ele começou a reclamar: - Eu quero pastel. - Mas aqui não tem pastel - disse o garçom. Tem torresmo, linguiça com aipim, língua ao molho de vinho, bolinho de arroz, moela com pão, carne de sol - continuou. - Mas eu quero pastel. - Pois vai ficar querendo, disse sua mãe, com a propriedade de quem conhece todas as nuances daquela personalidade forte. Ela já sabia os próximos passos: cara amarrada, jeito emburrado. Diplomática - qual mãe não é? - ela sugeriu a carne de sol. Não teve jeito; ele empacou. Como os cavalos lá fora, assustados com a energia sem fim das crianças saltitantes à espera de um passeio. Rafael, pastel não tem; se quiser aipim frito o moço traz. Não, agora não quero mais nada. Ah Rafa, vamos curtir, tá todo mundo numa boa, matando saudade, conversando. Não emburra não, por favor - pediu a mãe, já sabendo que nada o faria mudar de idéia, a não ser o melhor de todos os remédios, o tempo. E o tempo passou.

Desce mais cerveja, mais uma dosesinha de uma deliciosa cachaça produzida nos alambiques mineiros. Vem o almoço, um banquete de entupir qualquer artéria só de ver a bandeja se aproximando da mesa: feijão tropeiro, couve, lombo, arroz com alho e um torresminho pra acompanhar. E Rafael emburrado. Quando todos da mesa começam a se servir, naquele ritual mágico e único de um típico almoço em família, ele cede. Dá um sorriso e aprende, do alto dos seus cinco anos, que nem sempre a gente consegue o que quer, e que o prazer de uma família alegre é muito mais gostoso do que um pastel.

3 comments:

Leandro Colling said...

Muito bom o texto. Produz as imagens dos fatos.

Adriana Rodrigues said...

Ia lendo e visualizando a cada cena em minha mente. As (pequenas) observações tornam o texto bem escrito, detalhoso e agradável de ler. Facilita o entendimento ao leitor.

Silvia Mizuno said...

Concordo com Adriana. A cada parágrafo fui construindo a cena na minha cabeça e a história foi ficando cada vez mais rica. Chegou a dar água na boca na descrição dos quitutes!