Tuesday, July 10, 2007

Jornalismo literário - Muito o que viver

Beatriz Ferreira

- Tudo mentira. Esses homens se aproveitam da boa vontade das pessoas e as enganam. Eu já comprei uma caneta dessas, para ajudar sabe... cheguei em casa e liguei para todos os números que ficam aqui nesse papelzinho - apontando para o pacote que estava eu estava segurando, uma tática dos tais "proporcionadores de boas ações" - e nenhum deles, nenhum, minha filha, é de uma instituição de caridade que ajuda drogados. Nenhum! - Frisou.

Talvez ela tivesse a idade da minha avó, seu olhar era doce, acolhedor. Nada de cabelos brancos, poucas são as senhoras hoje em dia que não pintam os cabelos - com certeza para parecerem mais jovens. Bem vestida. Não com as túnicas e "legs" da moda, mas com roupas de senhora: bermuda comprida, blusa larga - para esconder os efeitos do tempo impresso em seu corpo.

- Eu ajudo instituições de caridade, mas as que eu sei que são sérias.

- Humm...

- É muito gratificante. Ajudo um orfanato que fica (...), uma creche perto da minha casa (...) e ligo para aquele programa de televisão (...).

E falava sem parar. Não era do tipo "chata", mas do tipo "mágica". Sim, porque eu estava hipinotizada.

Quantas instituições ela já disse que tinha ajudado? Três? Quatro? Mas o melhor ainda estava por vir.

- (...) mas nem sempre as pessoas que precisam ser ajudadas estão em instituições - disse.

E contou que quando estava muito frio saía com um de seus filhos - quantos filhos ela tinha afinal? - para distribuir cobertores e se desdobrava ao repetir os movimentos dos sem-teto quando, ainda dormindo, eram cobertos por ela. Mexia aquele corpo meio gordo, normal para a sua idade, desajeitosamente. Fiquei pensando o que pensariam os desabrigados, enquanto dormiam, quando deixavam de sentir aquela sensação do frio invadindo o seu corpo. Os mais crentes pensássem talvez que estavam sendo cobertos por anjos enviados especialmente por Deus, ou ainda que tivesse pairado sobre eles uma barreira invisível que impedia a neblina da noite pousar em suas peles frias, sujas, sofridas.

- Mas como fazer tudo isso com o que se ganha com a aposentadoria? Porque a senhora deve ser aposentada, não?

Na verdade foi só uma forma de descobrir de onde vinha a pensão extra que ela, com certeza, recebia. Talvez fosse viúva, talvez o marido fosse militar... e já tinha ouvido falar que viúva de militar ganhava bem.

- Sim, um salário mínimo. Muito pouco realmente, mas eu trabalho.

"TRABALHA?", pensei. Eu também trabalho, mas não consigo ajudar tanta gente. Ela trabalha? Quantos anos ela teria afinal? Quantos anos eram necessários para reunir tanto boa vontade, disposição e desejo em ajudar ao próximo? Mais que desejo, porque desejo eu também tinha; ela não só tinha como ajudava.

De repente, tocou educadamente na perna de um rapaz bem mais jovem, simpático, certamente um estudante, que estava de pé. Pediu que ele sinalizasse ao motorista que ela desceria no próximo ponto. A sirene apitou logo na frente acendendo uma luz vermelha.

Ela sorriu docemente para mim. Se levantou, deu dois passos e sussurrou como quem conta um segredo.

- 67 anos. E ainda tenho muito o que viver.

Olhou nos meus olhos para ter certeza que eu teria aprendido a lição. Depois que obteve sua resposta foi caminhando com alguma dificuldade até a porta do ônibus e foi embora.

"67 anos, e ainda tem muito o que viver", repeti baixinho para mim mesma.

1 comment:

Leandro Colling said...

Precisa facilitar a vida do leitor para q ele saiba claramento de quem vc está falando.