Wednesday, July 11, 2007

Jornalismo Literário - O bolo

Vivian Barbosa

Disseram-lhe que ela já tava bem grandinha para ter medo de andar em passarelas. Mas aquela era a mais comprida que já tinha visto. Impossível não sentir medo. Impossível não dar cada passo sem imaginar aquele monte de concreto se abrindo embaixo de seus pés. Ela despencando com todo o seu peso. Três coisas prometeu a si mesma: um dia se livraria do seu cabelão na cintura, os quilinhos extras e o medo de passarelas. A única coisa que Julinha conseguiu foi cortar as madeixas.

Não tinha medo de altura. Viajava de avião. Explorava cavernas. É antropóloga. Enfrentou uma banca de mestrado. Por que esse medo? A passarela que avistava agora era questão de honra. Ela estava aos pés da monstra. Olhou para um lado, ninguém conhecido. Olhou para o outro, ninguém de novo. Ai, quem dera uma mão para segurar... Só uma mãozinha para apertar...

Começou a escalada. Aos poucos, avistava o teto do ônibus parado no ponto. Troço sujo. Todo empoeirado. De dentro já dá nojo, por fora então... Fala sério! Além do pânico, o joelho latejava. Onde esses arquitetos estão com a cabeça para planejar acessos tão íngremes? No fundo, no fundo, beeeeeem lá no fundo, aquela pontinha de culpa no cartório insistia em alfinetar. Quem manda ser sedentária?

Os passos eram curtos e lentos. Ô dúvida cruel! Se fosse ligeiro, poderia atravessar mais rápido. Também tinha mais chances de tropeçar no cadarço do sapato do outro pedestre que também estivesse andando depressa e assim não teria bons reflexos para segurá-la, evitando que caísse lá de cima. Carona filha da puta que lhe deu um bolo!

Agora, a parte plana. Os joelhos pararam de encher o saco. O problema já era outro. As luzes da passarela e dos postes. Pra quê tanta luz, meu Jesus? Estava ficando cega. Ergueu as palmas das mãos, escondeu uma parte delas. Saiu andando. Parecia maluca. Continuou andando. Mãos estiradas na frente. O que tanto olhavam para ela? Todo mundo podia fazer aquilo para proteger as vistas se estivesse fazendo muito sol. Só por ser noite passava a ser estranho? Se tava tudo tão iluminado.

Tremedeira. Carros pesados passando por debaixo da passarela. A tentação de olhar para a pista. Sabia que não devia olhar. Mas queria olhar. Não resistiu. Olhou. Xiii! Agora não tinha nem mais passarela, nem chão, nem buzú sujo, nem cadarço de sapato. Sumiu tudo. Lembrou da sua polaina multicolorida que usava quando criança, em Paris, quando morava lá. Do seu pai dizendo que ela era igualzinha a ele. Dos índios kiriris no sertão da Bahia e da oca onde teve que dormir por cinco dias para realizar pesquisas científicas. Tirou os olhos da pista. Essa passarela tem que acabar!!!

A descida se aproximava len-ta-men-te. Ela decidiu correr. Correu o mais rápido que pôde. Só pensava na agenda que carregava nos braços. Ela não poderia cair. Ali estava sua vida. As mãos suadas não ajudavam. Não, não ia cair. Estava segura. Tava acabando... Tava acabando... O ponto de ônibus. Acabou. Podia respirar aliviada. Piscar os olhos e umedecer o globo ocular. Por sorte, a sua condução estava parada logo ali. Entrou e sentiu o bafo quente. Carona filha da puta!

5 comments:

Fábio Guerra said...

Corvardia esse texto! Você faz esse negócio de fluxo de consciência parecer fácil. Transita bem entre a ação e o fluxo. A escolha adequada das palavras é o acabamento perfeito do texto, pois dá pra visualizar perfeitamente o pânico da personagem.
Excelente!

Josi Anjos said...
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Josi Anjos said...

Concordo plenamente com Fábio. Para quem disse que não era nada literária vc se saiu melhor do que encomenda viu garota. Antes que eu me esqueça, gostei, especialmente, do último parágrafo, em que vc conseguiu dar movimento a narrativa.
Ufa! Deixa eu respirar um pouco para recuperar o fôlego, pois, acabei correndo junto com a sua personagem, rsrsrsrs.

Aline D'Eça said...

Vivi, tá gostando dessa brincadeira, hein? Excelente fluxo de consciência, garota. Você aderiu tanto à consciência da garota, que parecia estar na pele dela. É isso mesmo! E eu tendo a ousadia de tentar explicar o fluxo pra você, hein? Vou querer umas aulas, viu? rs...

Leandro Colling said...

Muito bom, adorei. Fui editar e apaguei, sem querer, a foto.