Monday, July 9, 2007

Jornalismo literário - A locutora do aeroporto

Pablo Reis

A locutora do aeroporto tem uma voz lânguida de quem parece ter acordado há menos de cinco minutos e, mesmo assim, é respeitada como a autoridade máxima em qualquer saguão. Seu falar rouco, com o ritmo peculiar de um passeio de bicicleta, é como uma pasta de guacamole: adocicado e picante.

A locutora do aeroporto certamente tem os cabelos longos e pretos que mantém presos durante o trabalho, o que destaca mais os olhos escuros e fundos maquiados para disfarçar a noite sem fim que acabou há apenas algumas horas. É uma mulher introspectiva, que teve uma adolescência envergonhada pela voz grave e só faltou ao trabalho duas vezes nos últimos cinco anos. A primeira porque o bebê estava com uma bronquite e mãe solteira tem esses contratempos. A segunda sem grandes explicações, apenas avisou que ficaria fora dois dias por estar afônica.

Ela fuma muito e se irrita quando precisa dar um boletim de urgência antes de terminar a última tragada no cigarro com alto teor de nicotina que se acostumou a usar. Pelo menos a cada dois dias, a locutora do aeroporto recebe um buquê de rosas em sua cabine climatizada, onde sempre servem água mineral a temperatura ambiente. Seu timbre sedutor é capaz de atordoar de senadores a surfistas e, dizem, os comissários de bordo comentam muito sobre a relação entre suas nádegas e como ela pronuncia palavras terminadas em “s”, toda vez que uma viagem é muito longa e falta assunto. Mas a locutora do aeroporto passou a ter vergonha de usar trajes mínimos na praia e parece sempre envolta num ar soturno, pelo menos quando está à serviço.

Conversa apenas o suficiente para não parecer pernóstica com os colegas, já que, afinal, ela é a voz oficial do terminal inteiro e está na mira fácil dos comentários maldosos. Já falaram em câncer na garganta e uma traição irrecuperável sofrida pelo ex-companheiro, mas poucos sabem mais sobre sua vida pessoal além do fato de ser filha de militar. Ao descer do táxi todas as manhãs, a locutora do aeroporto coloca um óculos de sol até chegar em seu terminal, de onde vai lendo chegadas e partidas, portões e companhias aéreas. A locutora do aeroporto é só uma voz e mesmo assim é tão palpável quanto qualquer Boeing que teima em não decolar.

6 comments:

Leandro Colling said...

Gosto muito dos textos do Pablo, mas esse, sem informar nome da moça e do modo como está escrito provoca aquela velha dúvida: não é ficção?

Alaine Santos said...

Adorei o texto. TB fiquei curiosa para saber o nome da locutora. A descrição feita no texto "A locutora do aeroporto" foi legal pela enumeração de detalhes e da relação de informações, dados e características que ajudaram a construir a imagem daquilo que se pretende descrever.

Pablo Reis said...

Alaine, obrigado. Acho que talvez o texto seja enquadrado na categoria de ficção, embora as locutoras de aeroporto sejam reais. Foi mais uma tentativa de descrever algo que nunca vi. Só pude enxergar uma locutora de aeroporto pela voz e procurei transformar essa voz em outras sensações a que ela me remete. A idéia era utilizar sensações que pudessem ser comungadas pela maior parte das pessoas que um dia já ouviram aquele "embarque imediato no portão 13"...

renata purri said...

Adorei; ainda mais eu que voltei de aeroporto esta semana e ouvi esta voz várias vezes. Tb escrevi sobre o poder dessa voz.

Liz Senna said...

Gostei muito do texto, mas acredito que neste caso, não seria necessário dizer o nome da locutora do aeroporto, pois devido a riqueza de detalhes na hora da descrição, a imagem praticamente se torna real e a voz ganha poder. Parabéns!!

Leandro Colling said...

Pablito, ficção??? Claro, sei dos limites e liberdades, mas uma coisa eu não abro mão: se a mulher não existe como tal, não é jornalismo.