Pablo Reis
Abel, seu nome Abel vai ser conhecido e chamado mais ou menos daqui a uns 25 minutos, quando as incompatibilidades digitais forem transformadas em sussurros de socorro.
- Abel, só tem esse Word Pad mesmo?
- Abel, por que está tão lenta a conexão?
E Abel vai correr bancada a bancada, com o crachá deslizando pelo peito, colocando senhas e mexendo em cabos azuis e dizendo que este ou aquele micro está com o HD queimado e resolvendo tudo com dois cliques e avisando que o servidor é meio lento assim mesmo.
Agora, Abel está à procura do professor da pós-graduação, disciplina Jornalismo Literário, que deixou a assinatura em algum protocolo para requisição de aula no laboratório 00. Mais um protocolo feito em papel, ele mesmo tinha sugerido ao supervisor que tudo fosse em meio eletrônico.
Ele lembra que o nome é Leandro, o sobrenome não sabe mais e também não interessa muito porque na sala só tem aluno até agora. Tem um rapaz com brinco nas duas orelhas logo na primeira fileira. Duas loiras sentadas na bancada de trás e um moço branco de lado, mexendo uns papéis com a perna esquerda cruzada sobre a direita, mostrando um tênis cinza-esverdeado, com jeito que de quem ainda está na graduação.
Não é muito possível porque as turmas de graduação estão de férias, mas para ele a única diferença na rotina é o afastamento do convívio primaveril das calouras vaporosas do curso de rádio e tv. Ah, Martinha, tomara que a semana que vem chegue logo e você confirme sua matrícula no segundo semestre, trazendo suas calças de cintura baixa e aquela tatuagem de joaninha no lugar das costas que eu nunca consigo lembrar o nome.
O professor ainda não chegou e Abel não entende como foi chamado para orientar o acesso aos computadores se ainda não tem professor. Sai da sala, volta com outro colega depois de cinco minutos e fica um pouco surpreso ao ver que o rapaz de tênis cinza da graduação já está na frente da turma falando de coisas que não vale nem a pena prestar muita atenção. "Bem que eu vi que a graduação estava em férias", raciocina.
Leandro Colling está bem humorado. Colling bem humorado é Jean Nanico convocando para uma festa de camisa colorida, só que com muito mais conteúdo. Ele convida para mais uma sessão da aventura de escrever não-ficção. "Bom, hoje vamos começar a ver quem realmente está conseguindo captar o espírito da coisa", pensa Leandro, antes de lançar o desafio de um texto com todos os elementos do jornalismo literário. E já na frase seguinte, quando está concluindo a deliberação de seu exercício, ele percebe que pensou em forma de clichê: "espírito da coisa... espírito da coisa".
- Está bem entendida a diferença entre descrição e narração, indaga o gaúcho - que baianizou bastante o sotaque nos últimos sete anos, mesmo que não tenha notado -, diante de uma platéia muda e de olhos fixos nas telas de computador.
- Então não há dúvidas entre narração e descrição?
Boné azul na cabeça, camisa de malha com o suor seco pelo ar condicionado, Abel faz jus a bolsa auxílio de estagiário de informática. Seu dilema profissional mais urgente é saber se aceita ou não instalar uma versão pirata do Office no computador da casa do cunhado, mesmo achando que a parada está engrossando pra galera da pirataria, mas que 50 conto é uma graninha decente. Leandro Colling não está mais nessa de contar nos dedos o valor da hora-aula. Está na fase de topar o que dá prazer e esta disciplina que ele defende por instituições tantas é uma dessas coisas, além de tomar banho de mar em Salvador. Mesmo que a resistência se apresente em sala de aula: a tosca objetividade.
- Hummmmm, só que como vai dar pra você comprovar se ele estava ou não pensando naquilo?, questionou a aluna naquela noite. Questionar é até forma de dizer, ela já está condenando mesmo.
- Com uma apuração exaustiva, com muita conversa com a fonte e com as pessoas que o conhecem e, principalmente, muita observação.
- Masssssssssssssss.... até o pensamento?
Eu não tinha dito que ela estava condenando e não simplesmente indagando?
- Sim, até mesmo o pensamento, respondia, já com o rosto avermelhado e mantendo o auto-controle, quando na verdade queria desabafar: "puta-que-pariu, que cabeça dura, estamos falando de contar a riqueza da vida e não de modelinhos para montar uma notícia". Ele tem a certeza que é por essas e outras que os jornais estão cada dia mais intragáveis, reciclando notícias da noite anterior, que falta de criatividade.
"Será que esse pessoal conseguiu captar o espírito da coisa?"
Dessa vez, ele já está lendo os textos e nem se toca de que pensou em clichê, prefere ficar bisbilhotando idéias alheias e conferindo no relógio quanto tempo ainda falta. Os dedinhos a dezenas nos teclados, os barulhinhos de uma colônia de formiguinhas digitais colocando letras numa tela.
- Abel, esse computador tá ficando maluco, toda hora preciso reiniciar, reclama o coroa bonachão que daqui a mais cinco minutos vai estar rindo com atraso em relação a toda turma de um texto sobre depilação e outras histórias cabeludas.
- É porque você apertou o botão que apareceu aí na tela
- Ah, foi mal, desculpe aí.
- Não tem problema. Se aparecer de novo, você coloca o usuário e senha. Anote aí.
Leandro Colling está bem humorado e isso não vai gerar manchete de jornal porque não tem nada de extraordinário, é mais banal que uma pequena colisão no trânsito e tão comum quanto sua calça de jeans lavado, surrada e com a bainha debochadamente dobrada para fora para não ser pisada pelo tênis cinza-esverdeado. Mas é um estado psicológico que parece se propagar em reverberações psicossomáticas afetando dezenas de alunos e seduzindo pela vibração a um estado de excitação quase lírica. Resumindo, René gostou.
- Beleza. Gostei desse texto, é bem jornalismo literário mesmo. Essa mulher deve ter sofrido com a dor até no cóccix.
"Ah, Martinha, cóccix, cóccix... como é que eu fui esquecer?".
Tuesday, July 10, 2007
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4 comments:
hehehe...o Leandro é assim mesmo...daí do fundo a visão é melhor...
Nossaaaaaaaaa, adorei o texto!!! Muito legal e engraçado que vc narrou a situação com tanta riqueza nos detalhes, e eu focada em produzir meu texto não tinha prestado a atenção. rsrsrsrrsrsrs
Não vou comentar. Conflito de interesses ehehe
hehehe...
espero que Leandro depois não redija um desmentido a respeito dos próprios pensamentos ousadamente expostos no texto...hahaha
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