Tuesday, July 10, 2007

Jornalimo literário - Um novo capítulo de um velho livro

Vivian Barbosa

O vizinho de parede esfregava o chão. O sangue na calçada, na frente de sua casa, aos poucos ficava rosado, misturado à água que era jogada. Uma vassoura de piaçava era o instrumento usado para fazer desaparecer da vista dos passantes as marcas de mais um crime. Um crime anunciado. Não foi a primeira vez. E, provavelmente, não será a última.

Antônio Conceição Reis sabia que estava jurado de morte. Ambientalista há mais de 18 anos, casado, pai de três filhos, negro, 44 anos, conhecido em Salvador, recebia ameaças constantes. Teve sua casa invadida no dia seis de fevereiro. A sede da ONG Nativos, grupo ecológico presidido por ele, já havia sido arrombada. Tentaram incendiar a barraca que ele cuidava, junto com a esposa, no Parque do Abaeté. As queixas estão registradas. De nada adiantou. Novamente, não foi a primeira vez.

Em 1988, outro conhecido ambientalista, também casado e pai de família, Chico Mendes, chegou a passar para polícia uma lista de seus possíveis assassinos. Nunca uma vítima teria sido tão clara e objetiva sobre aqueles que o abateriam, afirmou Zuenir Ventura, autor do livro “Crime e Castigo”, publicado em 2003. A história parece se repetir. E assim, como há quase 20 anos, a polícia não evitou que o pior acontecesse.

Antônio levou vários tiros na porta de sua casa, na manhã do dia nove de julho, quando chegava da escola de sua filha, depois de tê-la deixado na aula. Os criminosos o colocaram no porta-malas de um carro prata e o levaram. Na tarde do mesmo dia, por volta das 15h, Eliene Sampaio Reis, mulher de Antônio, já prestava depoimento na Delegacia de Itapuã. Por trás de seus óculos, sustentados por uma pele queimada de sol, seus olhos piscavam incessantemente. Rápidos, apreensivos, nervosos. Uma repórter apontava o microfone em direção ao seu rosto. As mãos de Eliene se apertavam. A aliança de casamento brilhava.

- Tinha muita gente que não gostava dele porque ele tirou o carnaval do Abaeté.

A conversa de Eliene com a delegada Francineide Moura teve que ser interrompida depois de uma ligação. Um corpo carbonizado e irreconhecível, apresentando marcas de tiros no tórax e cabeça, fraturas nas costelas, no crânio e em uma das mãos, havia sido encontrado dentro de um carro, próximo ao Recanto Ecológico Sucupira, uma reserva ambiental. Alguém teria cogitado se era pura ironia ou monstruosa premeditação. Só exames realizados pelo Instituto Médico Legal poderão confirmar se o corpo é do ambientalista.

- Quem poderia ter cometido um crime desses contra um homem que só fazia o bem? – questiona o amigo Raimundo Bujão.

A casa de Antônio passou o dia fechada. Estavam cerradas a porta e as duas janelas marrons, humildes acessos que sua família possui para o mundo. Os vizinhos não querem comentar. Eles têm medo. Os moradores da Rua Guararapes, no bairro de Itapuã, optaram pelo silêncio. É provável que não voltem a ver Antônio vivo. Só resta limpar a sujeira. Com água e vassoura.


* Exercício produzido a partir das informações publicadas nos jornais A Tarde, Correio da Bahia e no BA TV. Foto: A Tarde.

9 comments:

André Martins e Ariele Andrade said...

Gostei da descrição e comparação com o caso de Chico Mendes. Antes mesmo de ver a foto consegui ter uma noção de como foi a cena, descrição detalhada, cinematográfica e não cansativa.

Giselma Barbosa said...

Não sei onde iremos parar com tanta violência. Do jeito que as coisas andam temos que nos dar bem com todo mundo. Qualquer banalidade pode motivar um crime.
Em relação ao texto, no meu ponto de vista, presença dominante da narração e um pouco de descrição.

Valeuu Vivian!!!!!

renata purri said...

Ótimo texto, com riqueza de detalhes e informações, além de um estilo literário marcante. Parabéns.

Liz Senna said...

Parabéns pelo texto. Quando terminei de ler o texto a imagem que apareceu em seguida foi a mesma que tinha sido formada na minha cabeça, graças a riqueza de detalhes na hora da descrição.

Silvia Mizuno said...

Foi ótimo você ter agregado informações que estavam além das três fontes indicadas pelo professor. A história ficou ainda mais rica. O encaminhamento também deu um toque dramático na medida certa.

Najara Lima said...

Muito bom, Vivian. Um dos melhores textos que eu li aqui no blog. Com descrição, narração, estilo literário forte. Legal isso de ligar o início e o final do texto com a limpeza do sangue na calçada. Interessante também o fato de ter citado a história do Chico. É isso, é nesse caminho que eu espero que todos nós caminhemos até o final da disciplina. Adorei mesmo o texto, Vivian. Leitura rápida, descomplicada, emocionante.

Leandro Colling said...

Concordo com os comentários. Muito bom o texto.

Josi Anjos said...

Maravilhoso! Adorei o seu texto, bastante literário e temperado, na medida, pela contextualização histórica. Gostei muito do recurso que utilizou de abrir o texto com a descrição de um aspecto do fato, pouco valorizado pela imprensa tradicional, diga-se de passagem, e retomar o assunto com a foto no final, apenas depois que o leitor construiu a cena em pensamento.
Parabéns!

Foco na News said...

Viviam, seu texto está bacana mesmo. Um texto rico em detalhes, no estilo literário. Leitura fácil e agradável. Adorei