Wednesday, July 11, 2007

Jornalismo Literário - Descobrindo um sinal no peito

Najara Lima

Momento mais esperado do dia. 19h. O trabalho acaba. Passar o cartão de ponto na catraca, procurar nas profundezas do bolso um vale-transporte amassado que tinha economizado com a carona de ontem. Descer ladeira, pegar ônibus. Rangel, um moreno ligeiramente atlético de quase trinta anos, que aparenta pouco mais que vinte, esperou por alguns minutos. Mais outros. Ônibus, finalmente, às 19h30. Subiu rápido, como se sua pressa pudesse imprimir velocidade às rodas daquele ônibus branco, velho, lotado.

A distância relativamente curta da sua casa até o trabalho parecia agora infinita. A Paralela estava gigante. Mil pedaços dela se apresentavam diante dele, agoniado, apressado, quase que com taquicardia. A parada em casa seria rápida, mesmo que a contragosto. A droga da academia não poderia ser paga à toa. Exercícios durante 50 minutos, no máximo, já seriam suficientes. Barras, bicicleta, esteira. Nada de panturrilha ou coxa hoje. Rápido, rápido. Nem mesmo abdominais. Mais rápido. Desce escadas, sai na rua.

Atravessa a rua, correndo, sinal quase no vermelho. Dobra a esquina, mais dois quarteirões, rua de casa. O pedinte que ficava sempre em frente ao seu prédio estava lá novamente. Logo hoje, junto com a pressa.

- E aí, amigo, tem aquela moedinha pro café hoje?, diz o homem maltrapilho repetindo a mesma conversa de todo santo dia.

Rangel procura por algum troco que ele nem imaginava ter. Lá no fundo do bolso, a mão direita toca algo frio. Ufa, uma moeda.

- Tenho sim, toma aqui, livrando-se com destreza da situação.

Tinha arrancado distraidamente uma moeda do bolso. Era de um real, quantia que ele não dispensaria facilmente a qualquer um dos milhares de pedintes que encontrava todos os dias na rua. Mas naquele momento ele não poderia esboçar qualquer reação contrária. Abriu o portão pesado de ferro, pintado num tom de cinza sóbrio, e subiu pelas escadas. Eram só três andares, seis lances de escada, até complementariam seus poucos exercícios físicos do dia.

Entrou em casa, viu de relance seu irmão jogado no sofá e sua mãe vendo alguma coisa na TV no quarto ao lado.

- Ué, chegou tão cedo da academia..., indaga a mãe, que bem conhecia seu disciplinado filho quando o assunto era saúde.

- Tô cansadão hoje. E tenho uma coisa importante pra ver na internet, responde, com todo o jeito de quem quer encerrar de vez o diálogo que a mãe insistia em travar nos momentos mais impróprios.

- E não vai comer nada? Nem tomar banho? Essa roupa molhada de suor ainda vai deixar você gripado, continua a mãe devotada, sempre preocupada com o bem-estar do seu caçula.

- Comer eu até vou, mas banho só depois. Agora Rangel encerraria mesmo a conversa.

Entrou na cozinha ainda em seus trajes de ginástica e engoliu o complemento alimentar que substituía sua refeição noturna, técnica que utilizava para não ganhar peso. A meta era comer bem, malhar regularmente e aumentar sua massa corpórea, que se encaixava de forma perfeita ao seu corpo de pouco mais de um metro de setenta.

Nem pensou em tomar banho. A camisa suada foi jogada displicentemente em algum lugar do banheiro. Rangel jurava que outra hora arrumaria tudo aquilo. Agora, tinha algo inadiável a fazer. Entrou no quarto, uma mão tentando se livrar do tênis e da meia ensopada, a outra já pressionando o botão do estabilizador e da CPU. Até seu computador parecia ter aderido à lentidão que o acompanhou durante os últimos momentos do dia.

Finalmente. Computador ligado. O mouse procura rapidamente o ícone do Internet Explorer. Conexão lenta. Discada. O pai nunca escutara seus pedidos insistentes, quase desesperados, pela banda larga. E-mail pessoal. Gmail, amigo da lentidão. Abriu. Mais de vinte mensagens não lidas. Os olhos corriam pela tela, em busca de um item em negrito. Descartava todos os spams e correntes, todos os documentos em powerpoint. Outra coisa naquela noite lhe cairia melhor como injeção de ânimo.

E-mail encontrado. Abriu. Para facilitar, tudo no corpo do e-mail, nada de anexos que demoram pra abrir e de quando em quando infectam o computador. Seis parágrafos. Uma descrição dele mesmo, feita sob o ponto de vista de uma mulher que conhecera há pouquíssimo tempo. E que já sabia do seu sinal de nascença, localizado no peito esquerdo, bem do lado do coração. Sabia da sua família, do seu jeito de ajeitar a barba, das suas aflições. Não podia concordar com alguns detalhes do que lia, mas grande parte daquelas letrinhas em fonte Arial dizia, sem pudores, o que ele realmente era.

Ele estava ali, desnudo. Nenhuma máscara poderia ajudar a cobrir aquele menino sem casca sentado em frente ao PC. Metade embasbacado, metade feliz. Teve tempo de esboçar um sorriso, espantar uma mosca que posava na tela, ler o texto novamente. Chega dessa mistura de alegria, orgulho e não-sei-nem-o-que-dizer por hoje. Desligou o computador. Já passava das 22h. Guardou o tênis embaixo da cama, juntou a meia escura com a camisa largada no banheiro, colocou preguiçosamente no vaso de roupa suja.

Olhou feliz e cansado para a mãe, que ostentava um clássico de Dostoievski nas mãos. Ela se distraiu da sua leitura e retribuiu com o olhar terno, como de costume. O irmão já dormia no sofá. Calou a TV e ouviu o ronco do pai no quarto. Entrou no banheiro e se deu conta, pela primeira vez, como era diferente sentir a água gelada percorrer seu corpo e inundar o sinal no peito. A marca de nascença estivera ali, desde seu primeiro dia de vida. Nunca fora figura importante para ele. Citado como dono de misteriosos encantos na descrição da qual era protagonista, aquele sinal era mais que uma mancha um pouco mais escura que o tom natural de sua pele. Era agora uma arma, carta na manga, inseparável patuá.

7 comments:

Yuri Almeida - almeidayuri@hotmail.com said...

Ótimo texto Najara. Gostei muito da narrativa, bem como o fluxo...

Josi Anjos said...

Massa! Seu texto é muito interessante, ajuda a visualizar as cenas e apresneta o fluxo de consciencia de forma simples sútil ao longo do corpo do texto. Parabés, jornalista literária. rsrs

Luana Francischini said...

Najara,
O ritmo ficou ótimo! O fluxo foi sutil (acho que vc preferiu não arriscar muito, igual a mim!), naturalmente surgindo ao longo do texto. Parabéns.

Adriana Rodrigues said...

Najara, um bom texto para ser lido e contemplado. Observei também o vocabulário bem costurado que vc conferiu ao seu texto, citando uma das obras do escritor russo Dostoiévski.
Fiquei curiosa para saber qual obra: "Crime e catigo"?, "O idiota"?, "o jogador"?, "Noites brancas"?? rsrsr

bjus

Vivian Barbosa said...

um dos melhores (se não o melhor) texto q lí nesse blog.
não só por ter sido bem escrito, mas principalmente pela criatividade com que você transformou essa "simples" história em algo muito legal de se ler... gosto de textos que me despertem sensações. já estava ansiosa para saber o que tinha no email. rsrsrs parabéns! muito bom de verdade!

Renata Leite said...

Najara,
Bem criativo seu texto, descritivo e apresenta, mesmo que de forma tímida, o fluxo de consciência. Gosto de textos em que o leitor visualiza a história e isso você faz bem!! Parabéns garota!!

Leandro Colling said...

Adorei este texto, ficou ainda melhor do que a versão que li em aula. Parabéns.