Sunday, July 15, 2007

Jornalismo literário - A morte do presidente de João

Marvin Kennedy

Cabisbaixo e com a mão alisando o calvanhaque grisalho que acabara de fazer, João Raimundo ainda sofria com a ressonância dos tiros e dos gritos envoltos em lágrimas que ouvira naquela manhã, antes de sair para o trabalho. A paisagem da janela fosca da topic branca de linhas verdes duplas corria distante do pensamento de João que, mudo, ainda não acreditava no que havia acontecido na rua onde mora.

A porta de vidro e alumínio se abriu e um bafo de ar-condicionado mofado desliga João Raimundo dos pensamentos que o aprisionaram durante todo o trajeto de Itapuã até o Centro de Lauro de Freitas. Como um fantasma, ele transpõe as portas e divisórias cinza e bege de maçanetas roliças confeccionadas em aço frio. Eu, ao ouvir o trinco da porta encardida, esperava o tradicional boa tarde, acompanhado do longo sorriso de dentes marcados pelo tártaro marron de João, que, com os olhos mais arregalados do que o normal e suor escorrendo entre a careca e a testa negra, disse:

- Derrubaram um amigo meu lá na Guararapes. Deram um monte de tiro e ainda jogaram ele no porta-mala de um carro. Derrubaram meu presidente. Estive com ele no sábado e agora os "cara" vão e derrubam ele.

Parei de escrever a sugestão de pauta que deveria enviar para os jornais e dei mais atenção a João, fotógrafo da assessoria em que trabalho. Ele tem mais de dez anos de fotojornalismo, mas ainda se espanta com a morte de uma pessoa. Ainda bem.

- E aí John?! Tô com o documento da última reunião que fizemos para você assinar - falou mansamente o presidente do Grupo Ecológico Nativos de Itapuã, Antônio Conceição Reis, para João.

- De boa! Segunda-feira eu passo lá e assino - respondeu João Raimundo ainda sobre o efeito do conhaque que costuma tomar nos seus finais de semana de folga. Não sabia ele que não voltaria a ver seu "presidente".

Apesar de dois aparelhos de ar-condicionado ligados, outras gotas de suor insistem em passear pela careca de João, que cortou a onda das gotinhas com um pedaço de papel higiênico. Sentado na cadeira de estofado azul royal e de rodinhas pretas, ele me pediu que ligasse a tv da sala de clipagem.

- A antena quebrou. Vamos assistir aos jornais na tv da recepção - disse a João.

- Coloca no 11 - pediu.

Desta vez João sentou e recostou-se no trio de cadeiras, também de estofado azul royal, da sala de espera da Prefeitura. Esticou sua calça jeans preta, folgou sua blusa branca de botão de manga curta e parou para assistir a notícia.

- Antônio Conceição Reis, de 44 anos, conhecido como Antônio Come Lenha, estava na porta da casa dele, no bairro de Itapuã, quando quatro homens chegaram e dispararam vários tiros contra ele - informou o âncora, de forma bastante objetiva, obedecendo aos manuais de redação, como um cão obedece ao seu adestrador.

Antônio Come lenha, o presidente do grupo que João também faz parte, foi assassinado e sequestrado em frente à sua residência, de nº14, na Guararapes, uma rua estreita e com marcas das obras de saneamento autônomas dos moradores do bairro de Itapuã. Tiros de calibre 38, de ponta grossa, causam impacto e dilaceram a carne, enquanto os projéteis da ponto 40 atravessam órgãos, ossos e músculos. Juntas, as balas deram fim à uma história de luta pela preservação do Parque Ecológico do Abaeté.

- Joga esse fila da puta na mala que a gente vai tocar fogo nesse sacana metido à besta - disse um dos homens armados e com o burucutú que só lhe deixava os olhos à mostra.

O Ecosport prata com placa fria segue em direção à Camaçari.

- Pelo pedágio não porra. Vira à esquerda no retorno e pega a direita logo em seguida.

O trajeto escolhido pelos assassinos passa pelas localidades de Cajazeira de Abrantes e Cordoaria, de ruas de barro com matas e brejos fechados, só frequentados por caçadores de tatú e paca e motociclistas de trilha em alguns finais de semana. A escolha do local e do carro, alto e com boa performance para enfrentar as "costelas de vaca" da pista, foram muito bem pensadas.

-Aqui tá bom porra! Um lugar bom para este cara ficar. Adianta aí e vamos nessa.

As primeiras chamas começam na entrada de uma reserva ecológica na Sucupira de Abrantes e com a fumaça, que carrega um cheiro misto de combustível, aço, plástico e carne queimada, vai se esvaindo junto com o pó que se transformara o corpo do presidente de João.

Com o vento, o pó espalha-se entre o verde da Mata Atlântica de segunda geração da reserva. O sangue lavado da calçada da Rua Guararapes escoa pelos tubos da drenagem artesanal (quem sabe feita pelo próprio Antônio) até chegar num ponto de lançamento na bacia hidrográfica do Abaeté. De toda forma, sangue, pó e alma de Antônio Conceição, o presidente, ainda residem no local pelo qual ele tanto lutou e morreu: a natureza, em especial as águas escuras e densas da Lagoa do Abaeté.

2 comments:

Leandro Colling said...

Texto muito bom, mas como reproduzir este diálogo dos criminosos no carro??? Deve ser a influência de Gabriel Garcia.

Unknown said...

num tem nem como ser original no post. é a influência de gabo, com certeza... e eu nunca vi joão raimundo tão poético...